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  • Day 233

    The Himalayan Dream: Annapurna

    March 11, 2023 in Nepal ⋅ 🌫 3 °C

    Este é possivelmente dos capítulos mais difíceis e ao mesmo tempo fácil de escrever pela infinitude de acontecimentos que passaram tanto ao largo do trecking como dentro de cada um de nós. Foram, sem dúvida, dos melhores e mais marcantes dias, cheios de emoções, mais conectados e em harmonia como acontece sempre que convivemos demasiado tempo na natureza (já não estamos habituados). Existe algo nas montanhas que não se encontra em mais nenhum lugar, que nos magnetiza, nos faz sentir pequenos e insignificantes (faz-nos mais vezes falta). As montanhas são sábias, as primeiras e últimas vigilantes do planeta, dispostas a partilhar a sua sabedoria com quem estiver atento e procurar ouvir. Ao seu lado sentimo-nos mais respeituosos, humildes e existe um espírito de entreajuda silencioso entre todos os que caminham à sua superfície.

    Esta nova aventura começa na cidade de Pokhara a apenas 20km dos Himalaias. Estamos cansados da viagem de Lumbini a Pokhara. No hotel esqueceram-se de marcar lugar no autocarro e tivemos que estar sentados aos saltos, pelos buracos intermináveis da estrada, durante sete horas, em bancos de madeira. Descemos do autocarro já ao final da tarde.
    Tivemos ainda que preparar toda a logística para o trecking que começamos no dia seguinte. Obtemos as licenças para entrar no parque natural de Annapurna, comprámos bilhetes de autocarro para uma aldeia onde começa este trecking e alugámos o material essencial que nos faltava: o saco cama e um casaco quente para as baixas temperaturas. Nesse momento passa em frente à loja onde estamos o Scott.
    É curioso como sempre nos cruzamos com as pessoas que vamos conhecendo, nem que seja de cara em diferentes partes do mundo. Apesar da Ásia ser um continente imenso, os turistas acabam por ir sempre aos mesmos sítios, hotéis e restaurantes, recomendados pelo Google. Como o Scott tem menos dias vai fazer uma versão mais curta do circuito, de cinco dias, até à base do Annapurna, um dos picos maia altos dos Himalaias e uma das montanhas mais altas e perigosas de subir no mundo. O circuito que temos pensado fazer com o Miguel, por sua vez, dura doze dias e dá a volta completa a esta cordilheira.

    Chegamos por fim ao hostel, para descansar mas antes de nos deitarmos o Scott apresenta-nos um rapaz alemāo, que vai fazer o mesmo circuito que nós. Este avisa-nos de que o clima vai piorar bastante nos próximos dias e que à que se tem que se tem que ir preparado de material, física e mentalmente para o que aí vem. O rapaz notava-se assustado e deixou-nos apreensivos. Eu ainda me encontro um pouco adoentado, estamos bastante cansados dos últimos dias a saltar de cidade em cidade e a ideia de caminhar tantos dias em condições adversas de repente não nos parece tão apelativa. "Não viemos para sofrer". Vamos dormir, tardiamente, com a decisão tomada.

    É com pena e um pouco de vergonha que telefonamos, no dia seguinte, de madrugada, ao Miguel, a informar da nossa decisão de abondonarmos o circuito. Parece-nos mais sensato ir antes com o Scott ao outro percurso mais curto e adequado ao nosso estado de ânimo. Entramos no autocarro, com destino a Ghandruk, uma pequena aldeia de etnia gurung, de onde iremos começar a caminhada à base do Annapurna. Este deixa-nos a 30min da aldeia, não pode seguir pelo mau estado da estrada e damos os primeiros passos, de mochila às costas até à dita aldeia. Este curto passeio, até à aldeia, já nos deixa sem fôlego e nos faz pensar como é que vamos sobreviver até à cima. Para nos desanimar um pouco mais, em pouco tempo o céu de azul passa a um triste cinzento e não tarda em cair as primeiras gotas. Abrigamo-nos numa pousada onde nos damos um dia de descanso.
    No dia seguinte, despertamos antes do sol para chegarmos à seguinte aldeia que se encontra a 7h de distância. Quando o sol ainda não fez a sua aparição, sentes o frio a penetrar no corpo e a deixar de sentir as várias extremidades. Felizmente, em pouco tempo entramos em calor após dez minutos a subir escadas e o sangue começar a circular mais rápido pelos vasos. Quando o sol se levanta e os primeiros raios tocam o fundo do vale, esses são os momentos mais felizes do dia, a natureza encontra-se no seu auge, o ar é puro, somos rodeados por árvores em flor, os picos das montanhas estão polvilhados de neve e ouve-se o rio a contornar as pedras que se interpõe no seu caminho assim como o canto dos pássaros. É impossível não sorrir por dentro e estar em paz neste momento tão belo e fugaz.
    Um passo ritmado dá lugar a outro compasso dependendo se vamos a subir uma encosta, escadas ou por outro lado vamos para a descer, sem pressas.
    Vamos passando por aldeias piturescas, aldeões nos seus labores diários, nos campos de arroz,de milho e hortaliças, preparando comida, fumando cigarros a ver o tempo passar, olhando para quem passa, ou carregando fardos impossíveis às costas com cordas atadas à cabeça para facilitar a danada tarefa. Estes portadores normalmente são sherpas, uma etnia que vive nas montanhas do nepal à incontáveis gerações e são conhecidos pelas suas capacidades superiores de alpinismo, força e resistência em elevadas altitudes, servindo de guias para turistas ou portadores. Todos os alimentos e produtos de primeira necessidade têm que ser levados para as aldeias mais altas às costas destes homens e mulheres uma vez que não existem estradas transitáveis.

    Por fim chegamos ao fim da primeira etapa, já de rastos, depois de andarmos 14km com uma elevação de 930m até aos 2340m . O primeiro dia é o que custa mais, temos que nos adaptar ao peso da mochila e as pernas ainda não se habituaram a esta nova rotina. Descansamos num lodge típico desta zona, que se vão repetindo ao longo do nosso trajecto. Este tem uma sala comum onde se tomam as refeições e nos abrigamos do frio ou se passa só o tempo. O quarto apenas tem uma pequena cama para cada um e um cobertor mas não necessitamos de mais. A comida também é simples, mas nutritiva e a preços cada vez mais inflacionados à medida que se vai subindo, pelo custo extra de fazer transportar a comida ou as botilhas de gás para cozinhar. Da parte da tarde ficamos a ler, a escrever ou à conversa com o Scott, acabando por criarmos um verdadeiro laço de amizade. Falamos um pouco de tudo. Ele conta-nos histórias de casa, de por onde andou e para onde vai a seguir. Coincidimos em parte dos planos e decidimos encontrarmo-nos na Tailândia. Também nos conta que tem previsto fazer um curso de Vipassana. É um retiro budista de dez dias em silêncio e meditação, que o próprio Sidharta Gautama realizou antes de ter chegado à iluminação. Já outros viajantes com quem nos cruzámos nos falaram deste curso e ficámos curiosos sobre como será. É algo que nos gostaria fazer e a verdade é que não haverá melhor altura para o fazer que agora. No entanto, a decisão não pode ser tomada de ânimo leve porque será uma experiência que nos levará ao limite.

    Os seguintes dias são parecidos ao primeiro com pequenas mudanças da paisagem. Começamos a caminhar cedo, porque faz melhor tempo, por volta das 6:30, ainda em jejum e tomamos o pequeno almoço já depois do sol nascer, na seguinte aldeia. Terminamos de caminhar por volta das 13/14h. Temos tido sorte e nunca apanhamos chuva. De tarde, ou à noite chove um pouco mas não nos chateia. No terceiro dia pisamos, por fim, a neve que víamos só ao longe e dou por nós ali sozinhos, rodeados por neve, céu azul, as imponentes montanhas e o tempo parace também congelar e ali, no mais profundo silêncio, penso que quero ficar ali para sempre. Cada passo que dou parece mágico, irreal e intemporal. Deixo de sentir o cansaço e vamos flutuando, passo a passo, até atingirmos o destino final, a 4130m de altitude, o Annapurna Base Camp. Chegamos mesmo a tempo porque o tempo fecha-se de novo e começa a nevar mais forte que nunca.

    Pelo caminho, passámos por várias pessoas de diferentes nacionalidades: espanhóis, americanos, ingleses, franceses, italianos, alemães, luxemburgueses, indianos, nepaleses, malasios, japoneses... Estas montanhas não têm dono, frente a elas somos todos iguais e reduzidos à mesma condição humana e é interessante observar como todos sentem o mesmo, abrumados por tamanha grandiosidade.
    Agora só temos que realizar o caminho de volta, sempre a descer mas não menos complicado, pelos joelhos que já vão dando de si e pelo estado do piso que pela neve se encontra enlameado e resbaladiço. Foram três dias para subir, dois para descer.
    Despedimo-nos temporalmente do Scott, que tem um voo marcado de Calcutá para Bangcok dentro de poucos dias e ficamos o último dia em Jhinu, uma aldeia com umas termas naturais, onde disfrutámos de um bom banho relaxante, perfeito para terminar esta viagem em grande.
    Um jeep, uma caminhada e um autocarro depois encontramo-nos de novo no mesmo hostel em Pokhara, sem planos definidos mas não poderíamos estar mais felizes.
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